
José Guilherme Couto de Oliveira (*)
e Leôncio Jacintho Lopes
© 1998 - Direitos Autorais Reservados - www.orgonizando.psc.br/artigos/sala.htm.
Sinopse
A bagunça na sala de aula é uma questão que hoje ainda aflige à maioria dos professores. Evitando o jargão técnico de forma a tornar este artigo acessível a pedagogos, professores e pais; este artigo tenta, a partir de conceitos oriundos de áreas distintas – como a psicologia, a psiquiatria, a filosofia, o pensamento funcional e algumas correntes da psicanálise – diagnosticar as disfunções que originam a bagunça, sendo que podemos encontrá-las tanto no aluno, como no ambiente físico/social ou mesmo no próprio professor.
Para tal, apresentamos os conceitos de lei, de limite, de campo e quatro formas de interação; bem como as disfunções mais comuns da lei e do limite. Uma vez identificada a disfunção, trabalhamos com o campo e a forma de interação mais adequada para promover o surgimento de uma nova ordem, evitando recorrer a uma ação repressora.
Introdução
Não é fato incomum que um professor se irrite com comportamentos de alunos que venham a prejudicar o aprendizado individual ou da turma: situações de bagunça, dispersão, etc. Pretendemos utilizar os conceitos de limite e de lei não só como ferramentas que desenvolvam uma percepção crítica das disfunções que podem estar ocorrendo, como também para fornecer elementos que norteiem as intervenções do professor no sentido de poder substituir a repressão castradora por uma organização que favoreça o desenvolvimento.
Para tal, vamos recorrer a alguns entendimentos fornecidos pela psicanálise, pela psiquiatria e por psicoterapias corporais para melhor perceber a origem dessas disfunções. Ainda que haja essa variedade de conceitos de diferentes áreas de saber faremos o possível para fugir do jargão dessas áreas, mesmo que isso possa introduzir algumas imprecisões, colocando uma breve explicação quando o termo técnico for imprescindível para manter o texto acessível; pois estes conceitos estão tentando lançar uma nova luz a um problema que aflige bastante professores e pais.
Cabe frisar que o uso dos conceitos de limite e de lei não pressupõe um enquadramento da criança em uma ordem preestabelecida, mas sim a possibilidade de se encontrar ordens úteis à criança e à sua inserção na sociedade. Iremos, portanto, analisar que mecanismos são mais adequados para que o desenvolvimento da criança possa se dar de uma forma saudável e que mecanismos vêm trazer disfunções neste desenvolvimento.
O limite em Winnicott
Freud havia percebido que o bebê não nasce com a sensação de um eu unificado, essa unidade do eu é construída ao longo do desenvolvimento da criança; até mesmo a sensação de ter um corpo contínuo e delimitado pela pele necessita ser apreendida. Originalmente as percepções do bebê são apenas fragmentos dispersos que aos poucos vão se articulando. As percepções das quais ele não pode se afastar vão formar a sensação do Si, as demais vão constituir o outro do Si (entorno).
Winnicott contribui identificando as condições necessárias para uma integração adequada, que permita o surgimento dos limites que vão organizar os espaços e possibilitar a autonomia e o autocontrole(DAVIS). A principal condição para o estabelecimento desses limites seria a segurança oferecida em sucessivas esferas: a mãe, a família, os grupos sociais, o governo.
Segundo Winnicott "as crianças privadas de uma vida no lar ou devem receber alguma provisão, algo de estável e pessoal, quando ainda são suficientemente jovens para fazer uso disto em certa extensão, ou então são obrigadas a nos forçar a oferecer-lhes estabilidade mais tarde, sob a forma de uma escola autorizada ou, como último recurso, quatro paredes sob a forma de uma cela em um cárcere." (DAVIS, p. 169)
O limite fundamental discrimina o Si do não-Si; corresponde, no psiquismo, ao que a pele é para o corpo; os demais limites vão gradativamente orientando a inserção social da criança. O indivíduo anti-social sofre de uma inadequação nos seus limites.
A lei em Lacan
Essa inserção no social pressupõe uma ruptura da relação diádica3 do bebê com a mãe – ela é intermediada pelo pai e constitui a questão central do complexo de Édipo4. Na verdade, Lacan percebeu que, mais que propriamente a mãe e o pai, importam as funções desempenhadas pela mãe, pelo pai, ou por quem os substitua – passa-se a falar em função mãe e função pai.
Para Lacan, o desenvolvimento do complexo de Édipo se dá em três momentos: (BLEICHMAR)
1. o estágio do espelho;
2. a identificação do bebê com o desejo da mãe;
3. a identificação simbólica com a lei do pai.
No estágio do espelho, o bebê com um ego ainda fragmentado vê a sua imagem unificada em um espelho; esta imagem passa a servir de referência organizadora da integração desse ego. A mesma função do espelho é prestada pelo olhar da "mãe", que reconhece a criança e assim permite que a criança se reconheça como distinta dela. É a função mãe, que pode ser exercida por qualquer pessoa, atuando pelo reconhecimento, dando continente e cuidado.
O terceiro estágio introduz o elemento simbólico no psiquismo através da interdição edípica5. A aceitação da interdição do incesto propicia a internalização da lei6 e abre as portas para que a criança se inclua no espaço das regras sociais(PELLEGRINO). É a função pai que atua nesse estágio.
Podemos perceber que o conceito de lei em Lacan é um dos casos do conceito de limite em Winnicott. Portanto, recorremos a outros autores para melhor discriminar o uso desses termos.
O campo em Lewin
Para lidar com as disfunções da lei ou do limite, iremos propor o manejo dos campos envolvidos.
O conceito de campo se originou na física e foi transposto por Lewin para a psicologia. A sua teoria de campo busca descrever a situação essencial do aqui-agora da qual uma pessoa participa. Para Lewin, a fonte energética do comportamento deriva das necessidades e intenções do sujeito. Essas fontes geram forças e tensões no par sujeito-ambiente, que vão constituir o campo da situação. As tensões carregam o campo, que busca uma descarga pela satisfação. As tensões podem se alastrar, principalmente através das frustrações, que exercem uma pressão sobre o campo mais amplo. Portanto, um campo envolve uma situação, que engloba um ou mais indivíduos, e comporta energia, forças, tensões e cargas.
Se as necessidades do sujeito afetam os campos onde ele se insere, as suas próprias percepções derivam desses campos.
A inserção social
Em Freud, todo o ser humano tem impulsos7 destrutivos que precisam ser controlados para permitir o convívio social – toda cultura decorre deste controle(FREUD, 1931).
Por outro lado, Reich vai questionar essa posição, pois ele percebe três camadas no psiquismo(BOADELLA): uma superficial, que constitui as aparências; uma segunda que equivale ao inferno do inconsciente freudiano contendo as ameaças sociais como o sadismo; e uma terceira que seria um núcleo biológico pulsante, onde os impulsos não são distorcidos ou patológicos, mas que, de forma espontânea, permitem a socialização sem a necessidade de um controle imposto. A destrutividade presente no inconsciente é vista como um conceito de origem secundária, manifestação reativa à impedimentos da pulsação vital.
A construção adequada de um ego não constrange a pulsação biológica e permite que os impulsos encontrem uma forma de expressão espontânea e organizada, voltada à interação social. Para que isso ocorra, é necessário haver um contato real com as necessidades da criança de forma a poder lhe propiciar a segurança e a proteção na medida adequada ao seu desenvolvimento.
As formas de interação
Além do contato, que é uma relação predominantemente funcional, há três outros tipos de interação, que são predominantemente disfuncionais(FERRI): a separação, a frustração, e a castração.
O contato leva a uma percepção do Si e do outro de Si, e o acompanha em um movimento interinfluenciado.
A separação é um movimento do distanciamento (progressivo ou repentino) entre o Si e o outro de Si, que envolve a sensação de perda. Um processo de crescimento compreende quatro grandes separações funcionais: o nascimento, o desmame, a saída edípica e a adolescência. Estas separações correspondem a ampliações gradativas no campo de atuação da criança, do fusional8 ao social. Elas implicam em alterações em seus limites, que vão se tornando mais flexíveis para acomodar uma maior variedade do outro de Si.
Mas a separação é um grande entrave ao desenvolvimento se ela vem romper a segurança da criança antes que esta possa conquistar uma autonomia. A própria ameaça de separação, mesmo sem se consumar, já mina a segurança necessária à construção dos limites. Estas são as separações disfuncionais.
A frustração envolve uma barreira, com nuanças que variam do flexível ao rígido, sobre o qual o Si vai definir-se. É um impedimento do movimento expressivo do Si pelo outro do Si, quando este movimento não é direcionado de volta ao Si. Está ligada à renúncia, ao reconhecer-se impedido por uma força externa. Pode ser disfuncional (quando restringe a pulsação), mas nem sempre o é, como no caso de uma interdição edípica apropriada. Esta permite que a criança desloque a sua libido9 do progenitor para o mundo sem inibir o impulso, mas o seu objeto; restam alternativas à criança que não o retraimento. Esse tipo de frustração implica em um deslocamento do campo, uma vez que há um deslocamento do objeto. É a própria agressividade gerada pela frustração que traz a energia necessária para empreender este deslocamento.
Apesar da castração assumir conotações distintas para ambos os sexos, em ambos os casos está associada a uma proibição e a uma perda relativa ao complexo edípico. Proibição que transborda para além da interdição do incesto e se volta contra a criança restringindo a sua pulsação e a sua potência. Um exemplo disto se dá quando não apenas se interdita o incesto, mas se passa também a reprimir a sensação e a atividade genital infantil; ela não atua sobre o objeto, mas sobre o sujeito do desejo. Mais que uma barreira que delimita, ela impede ou nega a expressividade, a expansão do núcleo e do campo energético, vital e pulsante do Si. Em termos do movimento, ela não só impede, mas volta o movimento do Si contra o próprio Si, promovendo uma contração. A opressão é uma forma mais disfarçada de castração. Toda interdição que impede a expressividade do impulso em outros termos (escolhidos pelo sujeito, e não impostos pelo interditor) é castradora. A castração é sempre disfuncional, e implica em um retraimento do campo de ação.
Quando o outro de Si estabelece um contato real com o Si, ele pode perceber a necessidade de uma separação ou frustração adequadas; sem este contato, esses movimentos vão levar a uma restrição da pulsação do Si, a menos que este Si já esteja em condições de se autoproteger.
Discriminando o limite e a lei
O outro do Si fornece duas operações básicas para o desenvolvimento do Si: conter o Si e modelar o Si.
"Conter o Si é definir-lhe o campo de ação, o espaço, a expansão, é marcar a sua delimitação, limitar a sua tendência entrópica10. Modelar o Si, momento sucessivo, é propor-lhe uma estruturação e uma organização, uma ordem e uma adaptação, é oferecer uma resistência, uma mudança-investimento, é o esquema sobre o qual tender, a estrada a percorrer." (FERRI)
Podemos perceber que o conter o Si está vinculado à função mãe, é ele que funda o ego11. Está relacionado ao estabelecimento dos limites, se dá através da pele (para Freud o ego é um ego corporal) e do campo diádico, que vem ajudar o campo pessoal a delimitar-se.
Vamos passar a usar o termo limite dentro deste escopo mais restrito, que não inclui o modelar e a lei.
Já o modelar o Si procede da função pai, que funda o superego12 através da internalização da interdição13. Ele abre a relação diádica, introduz o terceiro e a lei, se dando através dos campos familiar e social.
O olhar do outro de Si na escola
Podemos olhar para a escola a partir das necessidades da criança e também através das necessidades da cultura.
Em termos da necessidade da criança, tanto o ego quanto o superego ainda estão se formando, ela precisa prosseguir na construção destes. A escola é um espaço de socialização proeminente, onde o seu superego vai organizar relações mais amplas que as familiares. O ego deve se fortalecer para mediar as exigências deste superego e com as dos seus impulsos14 encontrando novas formas para a expressão destes.
Em termos das necessidades culturais, a escola se institucionalizou a partir de um novo modo de produção calcado na maximização da eficiência, onde o espaço e o tempo precisavam ser controlados nas suas minúcias através da disciplina. (FOUCAULT) A escola assume o papel de um aparelho inculcador da disciplina - um adestramento que vem substituir a organização da pulsação biológica por um condicionamento controlador da atividade infantil que sufoca a sua pulsação criativa.(NEILL) Passa-se a um desenvolvimento restrito à reprodução de uma forma de estar no mundo que não se contraponha às exigências socio-econômicas(ALTHUSSER).
Como reprodutora das relações sociais, a escola, nas suas funções implícitas, adquire uma inércia em que continua reproduzindo, muitas vezes desapercebidamente, até mesmo condicionamentos que se tornaram desnecessários ao modo de produção pós-moderno. A disciplina tornou-se menos rígida, mas persiste na sua essência adestrante e se manifesta na densidade que ainda está presente no inconsciente dos adultos. Ela surgiu numa época onde caos era sinônimo de destruição. Nesta última metade do século, surgiram novas teorias capazes de representar a complexidade da natureza em oposição a enquadrá-la em um modelo linear – as teorias do caos e da complexidade.(GLEIK, PRIGOGINE) Através delas, percebemos a ordem simplista como estéril e o caos como a origem última de toda a criação, revertendo os conceitos anteriores.
Alguma ordem em um ambiente social é um fator necessário ao estabelecimento das relações interpessoais, mas perguntamos: que ordem? A ordem deve ser extraída da situação em questão, a partir de um contato com esta situação; ela é decorrente de uma postura ética que considera a realidade presente (BRANDÃO, 1997) – ela forma um conceito, em oposição a uma postura predeterminada (o preconceito). Em uma sala de aula, ela deve levar em conta os recursos do ambiente, do professor e dos alunos. À medida que esses recursos são limitados, se torna necessário abdicar de uma ordem idealizada e tentar a administrar uma certa dose de caos decorrente destas imperfeições e nela buscar a dose certa, necessária à criatividade transformadora.
Uma condição necessária para que o professor possa fazer contato com esta realidade é a de primeiramente fazer contato consigo e perceber os papéis reprodutores nos quais ainda está enganchado. Só então poderá perceber até que ponto a atividade infantil incômoda é uma manifestação da pulsação vital que não é tolerada por uma necessidade socio-econômica ou se é uma falha na construção dos limites ou na internalização da lei no aluno. Só com este discernimento poderá assumir uma ação de contenção (do Si da criança), de modelação deste Si, ou de transformação da lei externa castradora.
Para que haja esse discernimento é interessante entender melhor os distúrbios na formação do limite e da lei.
Os distúrbios do limite
Um limite adequado integra o ego em uma unidade, sem impedir o seu movimento, mas organizando-o em uma forma de expressão socialmente enriquecedora. Ele tem uma permeabilidade que permite que o Si perceba os sentimentos de Si e do outro de Si e que estes sentimentos se interinfluenciem sem que haja uma perda da discriminação.
Distúrbios do limite envolvem15:
1. O vazamento, onde o limite está incompleto, não tem a continuidade de uma membrana fechada que consolida o ego em uma unidade . Há uma hipersensibilidade aos estímulos, mesmo quando, por defesa extrema, isso não possa ser expresso e passe a impressão oposta. de que nada atinge o indivíduo. Transposto para um campo relacional, o vazamento do limite desse campo16 leva à dispersão, o indivíduo não consegue se concentrar naquela relação e reage facilmente aos estímulos externos a ela.
2. A difusão, onde não há uma discriminação completa entre o Si e o outro de Si. O indivíduo busca relações fusionais e projeta no outro questões que não suporta como sendo suas.
3. A rigidez, que oprime o movimento dos impulsos dentro de um espaço preestabelecido e independente da realidade externa. Sua reação é definida a priori, com base em regras fixas, sem considerar a situação de fato.
4. A introversão17, onde a permeabilidade é perdida, a libido é retirada do outro de Si. O Si se fecha em Si mesmo, fica às voltas com o próprio umbigo, sem estabelecer contato com sentimento do outro, em uma posição egoísta.
5. A extroversão, onde é perdido o contato consigo, o indivíduo vive fora de si, apenas através do outro.
6. A hipnose, onde o limite é estreitado excluindo parte do entorno como se este não existisse. O problema não está em poder fixar a atenção, o que é extremamente desejável, mas em não poder ampliá-la. A passagem de uma vida agrícola para uma vida urbana pós-moderna levou gradativamente a um aumento neste tipo de disfunção; deixamos de nos relacionar com o entorno e nos voltamos hipnotizados para aquilo que nos é apresentado – pelo computador, pela televisão, ou pela aula predefinida(STOLKINER). Paulo Freire nos mostrou como aprender com aquilo que nos cerca, ele fazia do entorno o assunto do interesse: "a leitura do mundo sempre precede a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele."(FREIRE)
Para melhor se perceber o limite de cada criança, há que considerar os campos envolvidos, que ilustramos a seguir com alguns exemplos:
1. o campo do ambiente físico. Um espaço apertado impede o movimento dos impulsos que se manifesta na necessidade de espaço da criança, invadindo o seu limite de forma opressiva;
2. o seu campo pessoal. Observável na sua capacidade de estar e criar sozinho;
3. o campo relacional diádico. Os vínculos formados nas relações a dois, quer professor-aluno, quer aluno-colega;
4. o campo social. A coesão dos grupos que se formam, a capacidade da turma funcionar como uma unidade.
Uma disputa de espaço, quando este é adequado (deficiência do 4º caso), tem conotações distintas de quando este é insuficiente (deficiência do 1º caso).
Os distúrbios da lei
A lei quando resulta de uma identificação funcional com a lei do pai, é internalizada, rege as relações sociais, portanto se dá no espaço do entre. Se manifesta de forma crítica e ativa, de acordo com a situação; implica em uma autonomia moral, que transcende a dinâmica punição/recompensa (KAMII). Caso contrário:
1. Se a lei é introjetada18, passa a reger as relações de forma rígida, gerando a obediência cega. Seu espaço é o dentro; é uma lei rígida que não considera as peculiaridades da realidade em questão.
2. Se a identificação com a lei não é aceita, e volta projetada19 para fora, deixa de concernir ao Si a não ser como uma ameaça externa. O mecanismo de lidar com a lei passa a ser a burla. Em um ambiente opressivo, pode haver uma burla da lei externa, sem que haja uma perda da lei interna; como a criança que faz bagunça quando o professor sai da sala, mas não se excede no recreio.
3. Se a própria lei é rejeitada, o Si passa a ser a lei, funcionando através do desafio. O indivíduo se torna prepotente.
4. Se o ego ainda está muito fragmentado, não há como se identificar com a lei, ela está em todo o lugar e muda a todo momento. (BRANDAO; SILVA) A pessoa fica confusa porque, para ela, a própria lei é instável.
As possibilidades de atuação
A percepção de uma atitude adequada a ser tomada em momentos onde a ordem da sala sofre perturbações20 que venham a dificultar o desenvolvimento da turma, vai depender da consciência que o professor desenvolva das disfunções do limite e da lei em três esferas: no aluno, em si próprio, e no ambiente. Vejamos alguns exemplos:
Podemos esperar toda uma gama de deficiências no que se refere à formação de seus limites, dentre as crianças que chegam à escola oriundas de diversas famílias com as suas diferentes inserções sociais. Winnicott via uma dificuldade em se oferecer um tipo universal de escola, em função das diferenças de segurança no lar.(DAVIS, p.170) Se o professor toma para si a responsabilidade de suprir essa deficiência em todas as suas manifestações de diversidade, não está se apercebendo dos próprios limites nem aceitando as limitações do ambiente; o resultado pode ser uma ênfase compensatória na disciplina de forma a poder controlar a situação, redundando em uma frustração para si e em uma castração da turma.
Um caso comum devido às diferenças sociais, familiares e individuais entre as crianças é o que ocorre quando lhes é dada uma tarefa longa – algumas terminam muito mais rapidamente que as outras. Ao terminar a sua tarefa, a criança abre o seu campo buscando inicialmente relações a dois e posteriormente relações grupais. Se no ambiente há normalmente uma recriminação a este comportamento, com um objetivo de "não atrapalhar os colegas", sem que lhe seja oferecida uma alternativa aceitável, o que observamos é que o próprio movimento se torna mais agressivo e vem aumentar a perturbação desta ordem esperada na sala. Em contraste, observamos os alunos em sala antes da chegada da professora – eles se organizaram espontaneamente em pequenos grupos desenvolvendo atividades de interesse próprio, em um clima de relativa harmonia. Os diversos campos grupais eram flexíveis e não conflitivos, havia uma pequena troca entre os grupos que enriquecia as experiências individuais.
Se a disfunção é do ambiente, onde englobamos não só o físico, mas também demandas culturais e socio-econômicas; insistir numa ordem introduzida de fora para dentro(PATTO) é participar de um delírio21 social (disfunção no professor) que muitas vezes não atende nem mesmo à evolução destas demandas. Além da ação transformadora do ambiente – indispensável, mas que muitos vezes tem um tempo de retorno muito remoto – há o recurso do professor buscar uma ação através do campo grupal focado em si, que venha a dar o continente que o ambiente não propicia ou possibilita. Por exemplo, observamos uma professora contar uma história, em uma turma de CA, assim propiciando um campo social que pôde conter a dispersão.
Se o problema estiver nos limites de um aluno, o estabelecimento de um campo relacional através de uma breve relação diádica com o professor ou com um colega poderia ser indicado; mas se o aluno está repetidamente chamando atenção da professora para si sem se satisfazer, a disfunção é da lei e não do limite, portanto pede a sua inserção em um campo grupal, onde ele poderá elaborar a frustração dessa demanda oriunda de sua fixação edípica, em um espaço alternativo.
Conclusão
A partir da percepção de que tanto o limite quanto a lei de um indivíduo se estabelecem a partir dos diversos campos (pessoal, interpessoal, familiar, social) onde ele se insere, propomos que estes possam ser usados na sala de aula para lidar com as disfunções que possam surgir, geralmente denunciadas por um sintoma de desordem.
Para tal, cabe primeiramente diagnosticar a situação: perceber se a disfunção é do limite ou da lei, e se ela se dá no aluno, no próprio professor ou no tecido social; para então fazer uso de um campo adequado que permita (re)constituição deste limite ou lei.
Necessário se faz que o professor, esteja ciente do papel que exerce e da sua importância no favorecimento de construção de atitudes que levam a uma passagem da assimilação de conceitos cristalizados à propostas de enfrentamento do mundo. Que se deixe atravessar pelas teorias, juntando a isso uma animação que surja de sua implicação22, tentando estabelecer dinâmicas cuja prática se adeqüe ao contexto da relação ambiente-professor-aluno e do quão mutante essa relação é; que se oriente por uma prática que relativize os vários pontos de vista aí envolvidos; que se esmere num engajamento com o maior desejo possível de experimentar suas limitações e possibilidades de êxitos, avaliando sempre os riscos das rotulações das partes: tanto a sua própria, quanto a proposta pelo sistema e a reproduzida por seus alunos.
Notas
3 Relação fechada a dois, formando uma díade.
4 Como é sabido, trata-se do conjunto de conflitos que ocorre na 1ª fase de desenvolvimento da sexualidade, por volta dos 3-5 anos. A criança vive uma rivalidade com um dos progenitores ao tentar viver uma relação a dois com o outro (na tragédia grega, Édipo mata o pai e se casa com a mãe).
5 Na interdição edípica, a criança é levada a abdicar de sua fixação na relação diádica com um dos progenitores (seu "amor").
6 Lei (cf. Aurélio): [……..] 3. Obrigação imposta pela consciência e pela sociedade. [……..] 5. Norma, preceito, princípio, regra. [……..]
7 Em termos mais técnicos, as pulsões.
8 fusional: relativo à não discriminação entre o embrião (feto, ou bebê) e a mãe.
9 A libido é a energia que move o indivíduo em função dos seus desejos.
10 Tendência entrópica: tendência à desorganização
11 O ego (eu) é fundado através do surgimento do ego ideal (uma imagem onipotente de si), é imaginário.
12 O Superego é uma parte da mente responsável pela organização do indivíduo perante o social, ele envolve a censura do que não é tolerado socialmente.
13 Pelo surgimento do ideal de ego (um modelo a ser alcançado), é simbólico.
14 O id – uma parte da mente com conteúdos inconscientes, por onde os impulsos aparecem no psiquismo. (FREUD,1923)
15 Aqui, não pretendemos ser exaustivos.
16 Da mesma forma que os indivíduos, os campos também tem seus limites, que fornecem o continente para a relação.
17 Na introversão a libido é retirada do objeto exterior e investida no mundo interior simbólico do sujeito.
18 Na introjeção a libido é retirada do objeto exterior e investida em um imaginário interior.
19 Na projeção, se atribui ao outro o que não se aceita em Si.
20 Por perturbações da ordem entendemos não só a bagunça, como também a retração e a disciplina exacerbada - estas são ordens por demais simples para favorecer a criação e o crescimento.
21 Delírio: um pensamento sem contato com a realidade.
22 Implicação: comprometimento com a realidade na qual se dá o seu trabalho.
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(*) José Guilherme Couto de Oliveira é psicoterapeuta corporal reichiano que integra ao seu trabalho contribuições construcionistas sistêmicas e cognitivas. No campo teórico, trouxe contribuições para uma atualização das questões energéticas desenvolvidas por Wilhelm Reich à luz da ciência contemporânea num enfoque holístico e de complexidade.